terça-feira, 18 de dezembro de 2007

... figurinhas descartáveis!!!... (antiga)




… figurinhas descartáveis, para mal dos nossos pecados, para assombração profunda… dos forrados, como chaga, na mente dos que nos desgovernaram, como se nada!!!... Estórias do dia-a-dia, de cada dia, ao dobrar da esquina, por aqui, por ali… passadas com amigos do peito, meus ilustres desconhecidos, ao meu jeito, gentes com menos sorte, com muitas agruras, com bastantes percalços, quase descalços, sem cheta e com mazelas, aos montes!!!... Basta vê-los, olhando como devemos, sem diminuir, sem massacrar, fazendo de conta que não nos apercebemos, sofrendo com eles… porque os aceitamos, compreendemos e choramos!!!... É cruel admitir que existem, proliferam, abundam, cada vez mais!!!... Vítimas duma sociedade ingrata, egoísta e patarata!!!... Ao que chegámos!!!...

… faço compras, como norma e por comodismo, numa grande superfície, embora goste mais do comércio tradicional, contacto directo com quem me vende, conversa que se arranja, simpatia que se gera, personalizado, claro!!!... Descurei-o, substitui-o pelos super e pelos hiper por acomodamento… eu pecador, me confesso!!!... Vou e, num instante, adquiro no mesmo sítio tudo aquilo que preciso!!!... Desde há muito tempo que frequento, aqui ao pé, um desses bacamartes, mercearias completas e repletas, habituei-me e como (…como todos os dias!!!... ) consumidor, tornei-me assíduo, com a cabeça no lugar, não me deixo levar, compro o que necessito, somente!!!... Quando vou, muitas vezes, deparo com cenas que me ficam na retina, que recordo, que me fazem pensar!!!...

… pessoa já idosa, um dos muitos amigos meus, ilustre desconhecido, de classe social baixa, pelo traje esfiapado, gasto, sempre o mesmo, cara rugosa, com vestígios de quem consome álcool amiudadas vezes, olhar vago, perdido no meio da multidão, com um carrinho do super-mercado, conduzido com afeição, com gosto, já preenchido com um embrulho, um saco de plástico de vulto!!!... Vi-o passar uma vez, segui-lhe o percurso, apreciei a paragem junto do segurança, mostrando o que levava, com um sorriso, com umas palavras, a sua entrada no espaço, o olhar guloso e curioso com que devassava tudo e todos, por onde cirandava, qual caravela louca, perspicaz, pouco voraz… nada comprava!!!... Fiz as minhas compras, como sempre… cruzei-me com ele!!!... Continuava com o mesmo saco no carrinho das compras, tirava algo das prateleiras, mirava e remirava, colocava no lugar… com mil cuidados, seguia em frente!!!... Depois de feitos os avios, paguei na Caixa, regressei a casa!!!... Do meu amigo, ilustre desconhecido… perdi o rasto!!!...

… os dias foram passando, sempre iguais, com altos e baixos, com quebras e alternâncias muito próprias, como a de todos… a vida dos mais normais, é evidente!!!... Em casa, fomos consumindo… a barriga não perdoa!!!...

… na semana seguinte, dia de compras mais avultadas, despensa vazia, azimute tirado ( …excesso, sem sentido!!!... ), direcção seguida, objectivo atingido, a mercearia do homem da Forbes, claro!!!... Lá caímos, como sempre, mais cómodo e rápido!!!... Estacionámos o carro, fomos andando, entrámos!!!... Eis senão quando… numa volta dum corredor, deparámos com ele, tal como no primeiro dia!!!... A mesma fardamenta gasta, puída, o mesmo olhar vago, aquoso… o mesmo rosto, ligeiramente avermelhado, o mesmo carrinho das compras, a mesma embalagem, saco de plástico, bem ao centro do dito!!!... Paragem aqui, tira e mexe, remexe, coloca no sítio, devagar, de mansinho, com cuidados mil, segue em frente, como sempre!!!... Chamou-me a atenção, como da primeira vez, agudizou-me a curiosidade, de tal ordem que, depois de dizer à minha mulher, segui-o à sorrelfa, fazendo de conta que não era nada comigo!!!... Os gestos, de repetitivos, mais curioso me puseram!!!... Chegado a uma certa altura encaminhou-se para a saída, para junto do Segurança, não da Caixa, com o carrinho vazio, isto é, com a embalagem de sempre, o tal saco de plástico!!!... Mostrou, comentou, sorriu… saiu!!!...

… contei o episódio, depois da perseguição, à minha mulher, falámos sobre o caso, apontei-lho, discretamente!!!... A partir desse dia, mais do que uma vez, encontrámo-lo nessa azáfama, nessa tarefa de brincar, nessa obrigação de mentira!!!... Ele, igual a ele próprio, o carrinho do super-mercado com o saco de plástico, embalagem que mostrava ao Segurança quando entrava, quando saía, percorrendo os corredores da gigantesca mercearia, olhando e mexendo… não comprando, fazendo de conta, simplesmente!!!... Figura curiosa, doentia, vazia… apartada de tudo, de todos, num Mundo imaginário, o dele!!!... Meu amigo desconhecido, tão ilustre e esquecido, pequenino!!!...

… pequeno apontamento, sem intenção:

- “… não, não tinha espingarda, não se revoltava por lhe terem tirado setenta contos ou mais, ou menos… não tinha nada, tinha mania, possuía uma grande fantasia, vivia com ela, disfarçava, fazia de conta!!!...”

… enfim, com os dias, com os encontros… já não ligávamos, fazia parte do esquema, era mais um!!!... Com a dele, os outros… com a de cada um, consoante e conforme!!!... Num desses dias de compras, por via duma bucha (…algo para comer, ao meio da manhã, um reforço do pequeno almoço!!!...) sentámos num daqueles cafés das grandes superfícies, quando reparámos que ali ao lado, preparando-se para a faina das compras de fingir, estava o nosso amigo, ilustre desconhecido, já com o carrinho, contendo a embalagem, bem ao centro… o tal saco de plástico, é evidente!!!... Olhámos e sorrimos!!!... Afastados, desligados por completo… fomos alertados por gritos e fúrias, berrarias!!!... Constatámos que era um indivíduo novo e forte, aventesma desconforme, homem na roda dos trinta e tantos anos que, furibundamente, invectivava a figurinha desta estória!!!... Ouvimos, entre outras coisas, que lhe chamava nomes, o injuriava, o mandava embora dali!!!... Que tomasse juízo, que fosse para casa, que largasse o carrinho das compras!!!... Que tristeza, quanta vergonha sentiu, certamente, quanta quebra dum sonho, quanta ilusão perdida, naquele instante!!!... Encolhido, mais que diminuído, depois de ter sido escarnecido por aquele tipo, familiar mais novo, pelo que ouvimos, esfumou-se, aos poucos!!!...

… nunca mais o vimos, figura pouca e descartável, amargura dos nossos dias, realidade dura e cruel, mais uma… entre tantas, com as que me cruzo, por aqui, por ali!!!... Aconteceu!!!... Sherpas!!!...

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