domingo, 15 de agosto de 2010

... ia passando por entre... (antiga)



… ia passando por entre as mesas do café olhando, faminto, para os copos, para as garrafas, para os pratos, figura cadavérica, rapaz ainda novo, velho… pelas agruras do Mundo em que se afundava, o da tóxico-dependência, descurando o que o estômago lhe exigia, encaminhando para a veia, qualquer moeda, quaisquer trocos que arrecadava na arrumação de carros, na pedincha continuada!!!... Fora criança, teve pais amantíssimos, teve amigos, colegas e companheiros de estudos, de aventuras, de travessuras… foi crescendo, fez-se adolescente, desviou-se do caminho que ia seguindo, normal, quando comparado com o que está estabelecido para os jovens, agora novos e dependentes, quase irresponsáveis… depois, num repente, homens com obrigações, pais de família, trabalho destinado, quando o obtêm, dificuldades ou obstáculos que se deparam a todos, com raras excepções, os menininhos, chamemos-lhes assim!!!...

… ele tinha pertencido a este último grupo, o dos menininhos… com tudo, ou quase tudo, algumas carências afectivas, alguns excessos materiais, um desequilíbrio que provocou a hecatombe, a fuga p´rá frente, o mergulho no escuro!!!... Tinha acompanhado o seu percurso de vida, ainda o recordava nos seus bons tempos, fogoso e alegre, despreocupado, quase sempre bem acompanhado com raparigas de estalo, com rapazes de idêntico calibre, grupo que fazia furor, que estava na berra, que conseguia concretizar sonhos e fantasias, as mais diversas, num País tão carenciado como o nosso, fugiam à regra, futuro garantido… na certa!!!...

… os pais idolatravam-no mas, pelas obrigações sociais, pelos entretenimentos que mantinham, pelas actividades que executavam, pelas viagens continuadas… descuraram o melhor, não o acompanharam devidamente, não perceberam o que se passava com o rebento!!!... Pequeno príncipe rodeado de luxos, boas roupas, dinheiros bastos, carros adequados para a altura mais indicada, de grande cilindrada, desvarios bem diversos, clubes, pub,s e concertos musicais, saídas para o estrangeiro, faltas constantes às suas obrigações, experiências de todo e qualquer tipo, sem fronteira, até que…. numa de constante desafio, quis experimentar também… fumou, snifou, injectou!!!...

… Mundo novo se lhe abriu, sensações, visões hiperbólicas, tudo perfeito, sentido de leveza total, desapego de quanto o rodeava, fuga da realidade que, por vezes… mesmo com tanta facilidade, se lhe deparava, uma leve dor de cabeça, um desinteresse que o acabrunhava, a falta dos progenitores, a ausência do carinho que desejava, a sensaboria da vida que levava, a busca do que ainda não tinha!!!... Alcançara tudo isso através daqueles charros, daqueles pós que aspirara, mais tarde… do que metia na veia, com uma facilidade dos demónios, através da entrega duns cobres, do dinheiro que lhe sobejava!!!... Impelido por terceiros, por companheiros… pensando bem, concluía que não, sequência infernal, pura consequência, um calhar, algo que tinha de acontecer, que… aconteceu, simplesmente!!!...



… o corpo habituou-se, quando faltava a dose, reagia, provocava desconforto… pedia mais e mais, a dependência foi-se agravando, o dinheiro escasseando, desprendeu-se de tudo quanto possuía, roubava em casa dos pais, vivia dentro daquela ratoeira, ciclo escabroso, tenebroso… reduzidos horizontes, objectivo sempre o mesmo, aliviar aquela falta que o assaltava, o escravizava cada vez mais!!!... Transformou-se por completo, os pais… preocupados tardiamente, começaram a fazer alguma coisa em prol do filho!!!... O dito, estava descontrolado… afundado naquela devassidão, Mundo sujo, degradado, sem valores, sem dignidade, arrumado pelas ruas, pelos cantos, pelas casas arruinadas, no meio de lixos e dejectos, misturado com sombras como ele, de agulha espetada na veia ou… buscando o que o corpo pedia, insistentemente!!!...

… falar dos esforços dos progenitores, dos desgostos provocados, das soluções para o caso… dos internamentos em casas de recuperação, quintas de desintoxicação, das vontades aparentes, das recaídas, seria um contra-senso da minha parte!!!... Há muito tempo o não via, chorava o desespero dos pais, a infelicidade do filho… a vida foi-se processando, com todos os altos e baixos, dentro dos parâmetros normais e anormais, para mim, para os outros e num escape, numa pequena pausa, num curto intervalo… estando eu sentado numa esplanada qualquer tornei a vê-lo, quase irreconhecível, qual fantasma macabro, olhos desorbitados, mão estendida, não balbuciando palavra, sequer… olhando todas as mesas, com gula, de esfomeado que estava!!!...

… num rompante, ligeiro, deslocava-se a uma mesa onde apanhava um resto duma torrada que não foi comida, um bolo abandonado por quem não o apreciou, uma bebida que não foi consumida até ao final, uma água no fundo duma garrafa, uma cerveja que ficou num copo, de mesa em mesa, aspirador humano… com voracidade, tudo engolia, indiferente ao olhar dos que o iam perseguindo e pensando na degradação humana daquele ser famélico que continuava de mão estendida, parando, sem palavra, andando de mesa em mesa!!!... Poucos lhe deram… sabiam qual o caminho do dinheiro!!!... Depois de o reconhecer, entristecido, pespeguei-lhe uma certa quantia na mão aberta que, logo se fechou, nem olhou… virou costas e fugiu!!!...

… foi, certamente… comprar a dose que o corpo lhe pedia!!!... Vidas tão iguais, quantas mais, quantos filhos sem pais, que… nunca foram!!!... Sherpas!!!...

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